Maquinistas de trens metropolitanos andam
em baixa junto ao conceito de muitos públicos. O motivo disso deve-se ao
fato de serem constantemente responsabilizados por acidentes. Isso tem
sido verdadeiro em São Paulo, e bem recentemente na Argentina.
Curioso sobre essa espécie tomada como irresponsável, decidi conversar
informalmente com um pequeno grupo deles. Diferentes entre si, sob
muitos aspectos, têm em comum um jeitão desconfiado frente a estranhos.
Não é difícil, com o passar do tempo, entender seu jeitão. Devem ser os
únicos profissionais solitários das ferrovias, uma vez que, em suas
cabines, se comunicam por rádio com o CCO (Centro de Controle
Operacional), e com o pessoal da escala, apoio, supervisão e o próprio
CCO, por meio de um celular especial cedido pela empresa para uso em
expediente. Não é - pelo que disseram - uma “prosa” propriamente
“reconfortante”, como possível aos demais trabalhadores que atuam em
atividades coletivas, onde a interação social mescla-se com a
profissional. O rádio e o celular especial prestam-se exclusivamente ao
plano da comunicação profissional, e quase sempre para que recebam
ordens de seus interlocutores.
No caso do rádio, conversam em linha fechada com o CCO, mas a resposta é
aberta, isto é, ouvida por todos os demais maquinistas em operação
naquele momento. Em situações tensas, como acontece algumas vezes
conosco nas comunicações profissionais, todos os demais maquinistas
ouvem as respostas do CCO. Não é difícil imaginar que isso seja
constrangedor, ao menos em alguns casos. Limitação tecnológica ou
controle intencional sobre condutas? Não perguntei.
Quanto ao uso do celular especial, há uma restrição interessante: não
pode ser utilizado pelo maquinista com o trem em movimento e, quando
parado, dentro da cabine. Não entendi o motivo da proibição do uso do
celular da empresa dentro da cabine, mesmo estando o trem parado, mas
não ousei perguntar.
Quase todos já foram vítimas de usuários enfurecidos. Alguns falaram
inclusive em invasão da cabine. Afinal, do ponto de vista do usuário, o
maquinista é o “comandante” do trem, e a ele responsabilizam quando
quebra, atrasa ou demora partir, principalmente nos últimos tempos,
quando a empresa e o governo deles fazem o que há para responsabilizar
em caso de acidentes.
Diferente de qualquer outro condutor (de aeronave, nave ou mesmo de
ônibus de longo percurso), não tem banheiro na cabine. Se a situação
aperta, terá que suportar até o final do trajeto. Todos os seus
movimentos internos são monitorados por uma câmera de vídeo e as imagens
controladas pela empresa. Não podem, também, comer ou beber durante o
trajeto, e menos ainda na cabine.
Como se pode notar até aqui, o maquinista é um profissional sujeito a
pressões internas e externas. Essa condição não é prerrogativa dele,
decerto, mas torna-se agravante no caso de um profissional que conduz
milhares de vidas em um trem que custa uma fortuna. No seu caso, um
acidente é capaz de produzir mais danos a pessoas do que a queda de um
avião ou o naufrágio de um navio. Estranhamente, entretanto, naves e
aeronaves são mais seguras, pois dotadas de instrumentos e de
procedimentos seguros, sob a tutela de regulamentos internacionais, além
de profissionais longamente capacitados.
Os maquinistas com os quais conversei, porém, não têm a autoimagem de
um comandante de nave ou aeronave. Talvez nem mesmo vejam a si mesmos
como comandantes, embora sejam responsabilizados nessa condição pelas
operadoras e pelos passageiros, quando convém.
Uma das razões dessa discrepância parece-me passível de explicação no
trajeto histórico da própria profissão. Até a proximidade da década de
90, a pessoa ingressava na “carreira ferroviária” – em especial na
tração – por intermédio de um curso de “ajudante de maquinista”. Esse
curso tinha a duração de um ano. Aprovada, a pessoa trabalhava durante
cinco ou seis anos como ajudante de um mesmo maquinista (era ajudante
daquele maquinista), e só depois desse período poderia pleitear uma vaga
de maquinista. Nesse caso, frequentava um “curso de maquinista”, com
duração de seis meses. Aprendiz e oficial. Ainda assim, o novo
maquinista iniciava em manobras, depois em trens de carga, mais tarde em
trens de passageiros de longo percurso e apenas finalmente em trens
metropolitanos de passageiros. Priorizava-se a segurança das vidas
humanas.
Com o desmonte da ferrovia paulista, desmontou-se também a carreira
ferroviária. A passagem da capacitação, também na década de 90, caiu da
trajetória ajudante-maquinista para a formação de maquinistas em apenas
seis meses. Mesmo assim, seis meses de formação para que o aspirante
fosse habilitado a conduzir um tipo (série) de trem. A partir de 2000, o
tempo de formação caiu para três meses para cada tipo de trem (série)
e, hoje, continuam os mesmos três meses de formação, mas para todos os
tipos (séries) de trens.
Perguntei pelo simulador tão propagandeado pela operadora e pelo
governo do Estado. Riram e disseram ser um “vídeo game gigante”,
utilizado para “reciclagem” dos maquinistas.
Desses três meses, metade em sala de aula, e a outra metade na prática,
com acompanhamento de um monitor. O monitor é um maquinista, sem
formação específica para ser instrutor, com um ano e meio ou dois de
experiência enquanto maquinista.
Imaginei, porém, que nos quarenta e cinco dias de sala de aula os
aspirantes a maquinistas aprendessem muita coisa sobre o sistema
ferroviário (rede aérea, material rodante, CCO, manutenção, via
permanente, etc.). Constrangidos, disseram-me que esses “detalhes” são
ensinados em cinco dos quarenta e cinco dias, e hoje por intermédio de
vídeos. “E o que aprendem nos demais dias?” – perguntei. Procedimentos
Operacionais foi a resposta, um manual tamanho família.
Fazem algumas provas durante o curso, outras ao final e, aprovados por
um supervisor da tração, estão habilitados como maquinistas, e recebem
um trem da série 7000 para conduzirem, solitariamente, milhares e
milhares de vidas todos os dias.
Se as coisas forem como disseram – e não tenho motivos para duvidar –
como podem ter sentimento de carreira? É apenas um emprego, e arriscado
para eles e para os usuários.
Essa situação, por si só, é uma condição de risco. Não consigo imaginar
uma empresa de ônibus entregar nas mãos de motorista novato um veículo,
e menos ainda com passageiros. Ou entrega? Em navegação marítima e
aérea isso seria inconcebível.
Interessante notar o que denomino de resignação do grupo. Mesmo com
consciência desse cenário inadequado, os maquinistas com os quais
conversei mostraram-se movidos por medo e culpa. Medo de estarem
envolvidos em qualquer tipo de acidente, e com sensação coletiva de
culpa diante de um acidente qualquer. Reconhecem erros próprios e de
colegas. Sabem que alguns se alimentam durante o trajeto, que colocam
objeto na frente da objetiva da câmera para que não sejam vistos
burlando alguma norma, que outros preenchem pranchetas em plena operação
para ganhar tempo na hora de sair do trabalho, etc. Não negam que isso é
indevido e perigoso.
Sabem, porém, que existem erros humanos acima dos deles, mas que não
são visíveis e, portanto, incapazes de serem identificados e
penalizados. De certa maneira, estão conformados com a situação de bodes
expiatórios de todos os pecados da empresa.
Soube por eles, por exemplo, que os trens modernos da CPTM são dotados
de sensores que indicam descarrilamento. O que isso significa? Caso
ocorra o descarrilamento de um ou mais rodeiros (rodas), o sensor ativa
um sistema eletrônico que imediatamente freia a composição. Mas o
maquinista não percebe? Não imediatamente, dizem eles, em especial se o
descarrilamento ocorrer com um rodeiro na cauda do trem. “Qual o
problema, então, se existe o sensor”, perguntei. Para minha completa
surpresa, soube que os sensores de todos os trens novos da CPTM foram
desativados nas oficinas. Motivo? Como o alinhamento dos trilhos não é
perfeito, o sensor pode identificar uma ondulação na via como um rodeiro
descarrilado e automaticamente frear toda a composição. Nesse caso o
maquinista teria que sair da cabine e percorrer pela via todo o trem
para constatar se foi ou não apenas um erro de leitura do sensor, e isso
iria prejudicar a movimentação (horários, intervalos, etc.). A solução
encontrada pela CPTM foi desativar todos os sensores. Um quesito de
segurança foi desativado, e a responsabilidade de perceber e reagir a um
eventual descarrilamento passa toda ela para o comando direto do
maquinista.
Curioso quanto ao tal “sistema” tão propalado pelos gestores das
operadoras e por autoridades do governo do Estado, quis saber um pouco
sobre ele. Afinal, quando de um acidente correm para afirmar que o
“sistema” funcionou, e que, portanto, a falha foi humana.
Soube que o famoso sistema chama-se ATC (Automatic Train Control), que é
um Controle Automático de Trens. Ah, isso é o sistema. Um conjunto de
equipamentos que automatizam o controle sobre a velocidade dos trens.
Perguntei se funciona e me responderam que sim. Descobri depois, por
meio de pesquisa, que o ATC foi instalado entre 1979 e 1980, quando da
modernização dos trens metropolitanos da FEPASA. A época o Metrô já
fazia uso do ATO (Automatic Train Operation), isto é, a condução do trem
independe do maquinista, exceto em emergência.
Ora, pensei, se o ATC funciona, não há nada que possa explicar um
acidente de trem motivado por velocidade e, nesse caso, o maquinista não
tem como promover estragos, ainda que queira. Ledo engano.
Disseram-me que, com frequência, por rádio o CCO (Centro de Controle
Operacional) “autoriza” (o maquinista não pode recusar a “autorização”,
pois prevista nos tais Procedimentos Operacionais) a isolar o ATC de
bordo (desligar o controle automático de velocidade do trem). O CCO diz
também, nesse caso, qual a via a seguir, até onde (local ou estação)
conduzir a composição e a velocidade a ser adotada. Nessa condição, o
trem fica completamente sob o comando do maquinista, que passa a assumir
todos os riscos da “autorização”.
“Qual o motivo disso”, perguntei. Reduzir o tempo de percurso e o
intervalo entre os trens, responderam. Estranho, pois imaginei que isso
fosse controlado pelo tal “sistema”. Soube, depois, que as
peculiaridades do ATC da CPTM não atendem as condições de intervalo
entre trens que a empresa insiste em praticar. Em sendo verdadeiro, a
situação é de extremo risco.
“Isso é ocasional”, perguntei. Riram discretamente, mas riram, dando a entender que é habitual.
Se o que disseram for verdadeiro – e não tenho motivos para duvidar, ao
menos em boa parte da conversa – estão explicados ou ao menos
entendidos alguns vazios que geram condições para riscos de acidentes.
Formação insuficiente para quem faz muito mais do que anunciar estações
além de abrir e fechar portas, excesso de pressão interna e externa, e
até mesmo ATC isolado (“sistema” desativado), não forma um cenário
propriamente seguro. Nessa medida, fazer do maquinista o vilão de todo e
qualquer acidente é no mínimo uma imoralidade.
Fosse o tal “sistema” eficiente e seguro como querem nos fazer crer,
não haveria necessidade do CCO exercer papel disciplinador sobre os
maquinistas, e muito menos o de “autorizá-los” a burlar o próprio
“sistema”. Fosse ele eficiente e seguro, e até mesmo os quarenta e cinco
dias para preparo profissional dos maquinistas talvez fossem
excessivos.
Tem alguma coisa errada nessa história, que não a exclusividade dos
maquinistas. Ainda que pratiquem pequenos deslizes, um “sistema” que
dependa de atitudes praticamente robotizadas de operadores não parece
ser propriamente exemplo high tech.
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