Sua aparência não denuncia, mas Odair Antunes [nome fictício] tem 50
anos. Mais da metade deles, passou dentro de uma locomotiva. Sim, Odair é
maquinista, e até alguns meses atrás trabalhava para a Companhia
Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Foi demitido sumariamente após
26 anos de casa. É por isso que nesta tarde ensolarada, em Osasco, sua
tranquilidade exala indignação: Odair tem certeza absoluta de que foi
usado como bode expiatório da empresa — e do governo do Estado — para
livrar a cara dos verdadeiros responsáveis pelos acidentes ocorridos na
malha ferroviária.
No dia 16 de fevereiro de 2012, Odair manobrava uma composição vazia no
páteo que serve a Linha 9 Esmeralda, que se estende ao longo do Rio
Pinheiros, ligando as estações Osasco e Grajaú. Por ali circulam alguns
dos trens mais modernos do sistema — e do país. Odair conduzia um deles,
o TUE série 7.000, fabricado em 2009 pela empresa basca Construcciones y
Auxiliar de Ferrocarriles (CAF) em Hortolândia, a 110 km da capital.
Mesmo assim, quando o maquinista entrava na via principal, dois vagões
descarrilaram-se. Foi entre as estações Presidente Altino e Ceasa, para
onde Odair se dirigia.
“Nem percebi que um dos carros havia saído dos trilhos”, conta. “Dentro
da cabine não escutamos muitos ruídos. Ainda mais porque o acidente
aconteceu com o penúltimo e o último vagões, lá na parte de trás.” Como o
motor dos novos trens da CPTM são potentes, tampouco foi possível
sentir qualquer diferença na tração. “Aparentemente, estava tudo
normal.” Odair só se deu conta do descarrilamento ao receber uma ordem
expressa do Centro de Controle Operacional (CCO) para deter a
locomotiva. Um de seus companheiros vira o carro ser arrastado e avisou o
CCO pelo rádio. Ao descer do trem, Odair viu o vagão tombado — e soube
na mesma hora que estava em problemas. “Meu psicológico desabou.”
Felizmente, ninguém se feriu: o trem estava vazio, saindo da garagem.
“Se houvesse passageiros e eu estivesse numa velocidade de 90 km/h, não
tenho dúvidas: haveria óbito”, desabafa. O único que se deu mal nessa
história toda foi o próprio maquinista. No dia seguinte, 17 de
fevereiro, Odair era demitido por justa causa. De nada adiantou sua
vasta experiência na CPTM e, antes, na Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa),
onde começou a carreira, em 1986. Também não importaram todas as horas
de trabalho ou os riscos constantes que correu no exercício
da profissão. Nem mesmo o fato de ser um profissional especializado,
que dava cursos de formação para novos maquinistas desde 1991, ajudou a
aliviar sua barra. Menos de 24 horas após o acidente, e sem qualquer
sindicância interna para apurar as causas do descarrilamento, as
locomotivas da CPTM já não fariam mais parte de sua vida.
“Falha humana” tem sido o termo preferido da companhia e do governo do
Estado de São Paulo na hora de explicar à imprensa os acidentes
ocorridos com cada vez mais frequência na malha ferroviária paulista.
Com Odair, não foi diferente. Ao serem inquiridas pelos jornalistas a
respeito do descarrilamento na Linha 9 Esmeralda, as autoridades, mesmo
sem qualquer investigação preliminar, foram taxativas: o acidente fora
causado pelo maquinista e não por eventuais falhas no sistema. Odair foi
embora com uma mão na frente e outra atrás, e tudo continou exatamente
como estava.
Talvez por isso, no comecinho de março, dia 7, outro vagão saiu dos
trilhos exatamente no mesmo lugar — entre as estações Presidente Altino e
Ceasa. Então, a CPTM resolveu interditar o local. Até porque, antes de
Odair, um acidente muito parecido ocorrera com outro maquinista, em 16
de janeiro. Foram, portanto, três ocorrências idênticas, três
composições descarriladas, nas mãos de três profissionais diferentes,
num intervalo de três meses. Odair foi o único que perdeu o emprego. E
sabe muito bem por quê.
A imprensa estava em cima do governo. “Tive o azar de descarrilar apenas
um dia depois de um acidente grave na CPTM”, lamenta. De fato, no dia
15 de fevereiro, uma locomotiva de serviço chocou-se com um trem de
passageiros na Linha 7 Rubi, deixando 51 feridos — dois com gravidade. O
secretário estadual dos Transportes Metropolitanos, Jurandir Fernandes,
afirmou instantaneamente que estávamos diante de mais um caso de “falha
humana” — mesmo tendo sido o quinto acidente ocorrido no sistema desde
julho de 2011. Mais tarde, uma maquinista e um controlador do CCO
receberiam justa causa devido à colisão.
Odair, porém, não se vitimiza. Sua demissão sumária, diz, está
oficialmente baseada no descumprimento de duas normas de segurança da
CPTM: ele desativou o sistema de vigilância automática, também conhecido
como “homem morto”; e desrespeitou a proibição expressa de alimentar-se
dentro da cabine.
O “homem morto”, como o próprio nome sugere, é um dispositivo que detém a
composição caso o maquinista seja acometido por algum tipo de mal
súbito e perca os sentidos. Neste caso, evita que o trem continue em
descontrolado movimento — o que seria desastroso. Para provar que está
vivo, o maquinista deve pisar, a cada seis segundos, sobre um pedal que
existe em baixo do painel de comando. Caso contrário, o “homem morto”
será ativado.
Como tinha fome, Odair desativou temporariamente o sistema de vigilância
automática. Assim, poderia comer a uma distância que julgava segura da
mesa de controle, sem precisar ficar pisando de tempos em tempos no
“homem morto”. A câmera instalada na cabine do trem registrou tudo.
Quando houve o acidente, a CPTM recorreu às gravações e encontrou o
álibi perfeito para responsabilizar o maquinista. “Fiz isso para
preservar o equipamento de um possível café derramado”, justifica.
“Nossos intervalos são muito curtos, não dá tempo de se alimentar entre
as viagens. Mal temos tempo de ir ao banheiro.”
Nenhuma das duas falhas que Odair admite ter cometido enquanto manobrava
o TUE 7.000 até a Linha 9 Esmeralda possui ligação direta com o
descarrilamento. “Não fujo da responsabilidade por ter desligado a
vigilância automática e ter tomado meu lanche. Aceito levar uma
advertência por isso, mas não quero ser usado como bode expiatório para
calar a imprensa e livrar a CPTM de suas responsabilidades”, explica.
E, segundo o maquinista, as responsabilidades da companhia são muitas. A
mesma empresa que demitiu Odair por haver desativado um equipamento de
segurança ordena o desligamento, na oficina, de outro dispositivo,
igualmente importante. Odair explica que a composição que conduzia
naquele fatídico 16 de fevereiro está equipada com sensores
anti-descarrilamento. É uma tecnologia que freia automaticamente o trem
ao detectar barreiras nos trilhos, impedindo que seus vagões saiam da
linha. Mas os sensores não podem ser utilizados, tamanhas são as
irregularidades na via. “Se estiver ligado, o trem simplesmente não
anda: o equipamento vai interpretar os desníveis como obstáculos na via e
acionar a emergência”, sublinha. Odair tem certeza que, caso os
modernos trens da CPTM pudessem dispor de todos seus instrumentos, sua
composição jamais teria saído dos trilhos.
Não é só. Devido às limitações energéticas, prossegue Odair, nem mesmo
os motores dos novos trens podem funcionar em sua potência máxima. “São
apenas três subestações elétricas na Linha 9 Esmeralda”, diz o
maquinista. “É pouco.” Por isso, as composições operam com
aproximadamente metade da força que possuem — e, mesmo assim, as panes
são frequentes: cerca de uma por semana entre janeiro e março de 2012.
“A rede elétrica não aguenta nem os trens circulando com potência
reduzida… Imagina se funcionassem a pleno motor?” Atualmente, a CPTM
está fechando a Linha 9 Esmeralda aos domingos para realizar as
manutenções necessárias nos cabos de alimentação.
Mais graves são as deficiências que deixam o sistema, frequentemente, às
escuras. Durante a longa conversa que tivemos, na sede do Sindicato dos
Ferroviários da Sorocabana (Sinferp), Odair enumerou uma série de
falhas que não são exatamente humanas, mas acontecem constantemente na
CPTM. Em geral, são panes que dificultam a comunicação entre trens e
controladores — e colocam em risco a segurança dos passageiros.
Comecemos pelo rádio. “A comunicação entre o maquinista e o CCO deveria
ser alta e clara em toda a extensão da malha. Porém, a frequência é
interrompida em vários trechos da Linha 9 Esmeralda”, denuncia. Por
exemplo, entre as estações Berrini e Vila Olímpia, Autódromo e
Jurubatuba, Santo Amaro e Granja Julieta. “Nestes lugares, umas cinco
vezes por dia, perdemos a comunicação. E não importa se o trem é velho
ou novo.” Sem rádio, diz Odair, o controlador não pode alertar o
condutor sobre a ocorrência de algum problema: obstáculo na via,
iminência de colisão, rompimento na rede aérea, acidentes e uma longa
lista de etcéteras.
Outra inconstância do sistema ferroviário em São Paulo atinge a
sinalização visual dos trens no CCO. Quando funciona bem, o equipamento
permite ao controlador saber com exatidão o posicionamento de cada
composição na malha ferroviária. Quando falha, os funcionários perdem a
localização dos trens no mostrador. Ficam assim impossibilitados de
orientar os maquinistas sobre quais movimentos podem ser executados — e
quando e onde e com que direção. “Os trens simplesmente somem do
painel”, diz Odair. “Comigo isso acontecia no mínimo três vezes por
semana. E não há lugares específicos para ocorrer o problema.”
Quando os dois problemas — no rádio e na sinalização — ocorrem
simultanamente, só resta aos controladores comunicar-se com os
maquinistas através das estações. Neste caso, os trens são obrigados a
trafegar com velocidade reduzida. Um condutor (cujo rádio esteja
funcionando) avisa o outro verbalmente, pela janela da cabine, de que
deve se comunicar com o CCO pelo telefone da estação. É como se tudo
fosse manual novamente. “Já aconteceu comigo algumas vezes”, lembra
Odair. “No horário de pico, vira um caos.”
Daí que o maquinista não consiga entender porquê o governo se dedica
tanto a comprar os trens modernos da CAF se não acompanha as novas
aquisições com os correspondentes investimentos na infraestrutura
ferroviária: trilhos, rede aérea, subestações, sinalização etc. Desde
2006, o Estado adquiriu 105 trens, dos quais 72 estão em operação — os
outros 33 serão entregues gradativamente até 2013. Mas, de que adianta
contar com composições altamente tecnológicas se o sistema não lhes
permite operar plenamente? “É jogar dinheiro fora”, diz o maquinista,
que desenvolveu uma teoria para explicar esse descompasso.
“O governo compra trens novos para tirar foto com a imprensa. O sistema
continua obsoleto, mas ninguém percebe. Daí, quando acontece um
acidente, dizem que houve falha humana. O profissional é demitido e tudo
continua como está.”
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